domingo, 7 de setembro de 2008

Futebol (republicação)

Belo Horizonte, 2 de setembro de 2006.

Ingratas, as águas dos sentimentos! Como ousam elas se esquivarem de minhas arapucas?! Mas eu não desisto: sei que conseguirei domar a mim mesmo; a toda a realidade, ao belo estilo Neo.

Mil vezes me voltei para as insondadas águas de minhas venturas; lancei-me como flecha, à espera de tornar-me um tubarão, senhor de minhas águas. Assim foi, memoravelmente, em São Francisco, quando pela primeira vez observei que ainda sou dependente de meu ar; e que, mesmo intoxicado por ele, ainda lhe devia minha vida. Saltei, pois; pus-me como flecha; e antes mesmo que a água tocasse meus pulsos, tremi; saltei de volta à superfície, e já nunca tinha mesmo querido conhecer os abismos oceânicos. Registre-se esta censurável observação: sou teimoso, isso mais que determinado. Esperneio com certa desenvoltura; por isso, o risco de me sujeitar a fazê-lo já não me incomoda tanto assim. Agora tremo ainda e novamente; e, penso, terminei de espernear ainda no parágrafo anterior.

O desafio, Sotustra, é que voar é muito mais difícil que decolar; mergulhar é muito mais difícil que saltar. Talvez por autocompaixão, por preguiça ou mesmo por mediocridade, tenho passado a ter certo carinho pela palavra "medíocre". Pois veja só: não é a média o que instiga? Para superar, não é preciso estabelecer parâmetros? Pois, a busca pela superação, que tanto prezo, é meu mais certo atestado de mediocridade. Porque talvez, em São Francisco, não tenha sido exatamente daquele jeito: posso ter sim mergulhado, até onde meus tímpanos, pulmões e ossos permitiram; e posso ter voltado apenas para tomar um pouquinho de ar; para comprar algum livrinho de recordes que pudesse me fazer sentir acima da média e dos medíocres. Mas não seria a superação um assunto para medíocres? O Super-Homem talvez ria de seus idólatras — e, creio, não se interessa por livros de recordes.

Mas eu não sou o Super-Homem. Adoro medalhas. Aquele que penso ser é movido por coisas assim. Talvez se eu não tivesse sido tão magricelinho; e não tivesse sido tão ruim-de-bola na Educação Física; e não tivesse tido tanto medo de tomar uma bolada; e não tivesse nascido com aquele ridículo peito-de-pombo; e não tivesse tido que ouvir daquela minha bela coleguinha de classe, à arquibancada, que me faria bem se eu passasse a "tomar um café-da-manhã reforçado todos os dias"; assim, talvez, quem sabe, eu não tivesse me interessado por Nietzsche, ou por Chico Buarque, ou por Machado de Assis, ou por Duke Nukem. Por isso, talvez eu deva ao futebol (e à Fernanda Mara, por que não?) muito daquilo de que mais gosto, e de que mais gosto de gostar.

Certa outra figura da escola ainda muito mais contribuiu para minha "intelectualização". Na quarta-série, enquanto eu ainda estudava à tarde, nossa fila era formada no ponto mais alto do pátio; minha turma ficava naquele pequeno beco, ao lado da misteriosa porta que levava aos fundos da cantina e à casa dos cachorros. Numa das ocasiões, especialmente quando a fila celebrava o retorno à classe após o recreio, comecei a observar um garoto, o "marciano", que, assim como eu, era bastante magricela. Mas ele sabia se defender determinadamente; era um intelectual (!); todas as suas idéias e brincadeiras eram interessantes. Para mim talvez fosse um fim-do-mundo se eu é que tivesse aquelas veias verdes e aparentes ao lado da orelha; se eu é que fosse chamado de "marciano" por todos aqueles populares jogadores de futebol. Mesmo sendo ainda mais magro e talvez até pior jogador que eu, ele não faltava às aulas de Educação Física. Naturalmente, tornou-se meu herói; e, durante o curto período em que ainda estudamos juntos, foi o meu melhor amigo. Muitas das minhas chatices e manias atuais foram inspiradas nele, o primeiro "acima da média" que reconheci.

Daí em diante, a poesia e a música passaram a ser para mim algo mais que alguns meros instantes de distração. Só me dedicava àquilo que eu julgava fazer relativamente bem. Deixei inteiramente de comparecer às aulas de Educação Física, mas não fui por isso reprovado. Passei a faltar freqüentemente também às aulas das demais matérias, e consegui me segurar até o segundo ano do ensino médio.

Não mudei tanto.


Lekso

2 comentários:

  1. Nossa. Não é à toa que o Rodolfo falou que você escreve bem. Além de estar muito bem escrito, está muito criativo. Quem me dera escrever assim. Redação no vestibular não seria mais um problema, haha!

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  2. Não lembro da frase mencionada por minha pessoa...de qualquer forma o resultaldo final dela me agrada.Tinha certeza que você não seria comum...seu lado alienígena nunca me incomodou, inclusive sempre fui fascinada pelo diferente...em algum momento da minha vida o igual me acalmava e entrei na roda de ter que ser popular e igual para ser aceita...mera ignorância. Meu curso me ajudou a entender o que me fascinava...não fico mais inquieta com que não entendo, não tenho que ser igual (Só de pensar nessa possibilidade me dá uma arrepio!!), sou simplesmente Fernanda.

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